Estadão
O consumo de tadalafila disparou no País. As vendas do medicamento, que originalmente é indicado para o tratamento de disfunção erétil e de problemas relacionados à micção, saltaram de 21,4 milhões de unidades em 2020 para 67,7 milhões em 2024, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Por trás desse aumento está o uso indiscriminado, inclusive entre pessoas que buscam melhorar o desempenho na prática esportiva. Embora o medicamento seja seguro e eficaz quando utilizado sob orientação médica, o consumo sem prescrição traz riscos e preocupa profissionais de saúde, que são enfáticos: ele não tem indicação para uso no pré-treino.
A seguir, entenda como o medicamento age no organismo, quando ele é indicado e as consequências do uso indevido, que podem variar desde disfunção erétil até problemas cardíacos.
Como funciona a tadalafila?
A tadalafila é um inibidor seletivo da enzima fosfodiesterase tipo 5 (PDE5) e aumenta a ação do óxido nítrico, promovendo o relaxamento da musculatura lisa e a dilatação dos vasos sanguíneos. Isso melhora o fluxo de sangue em diversas regiões do corpo, inclusive nos músculos. “Essa ação explica seu uso aprovado para disfunção erétil, hipertensão arterial pulmonar e sintomas do trato urinário inferior”, diz o urologista Luiz Otávio Torres, presidente da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU).
Tanto a tadalafila (Cialis) quanto a sildenafila (Viagra) regulam o fluxo sanguíneo e a principal diferença entre os dois medicamentos está no tempo de ação: a tadalafila tem um efeito mais prolongado, durando até 36 horas, enquanto a sildenafila geralmente atua por cerca de quatro a seis horas.
Uso em treinos
Por conta de seu efeito vasodilatador e da melhora no fluxo sanguíneo, com maior fornecimento de oxigênio para os músculos, surgiu a crença de que o medicamento poderia potencializar os resultados físicos durante os treinos. Não demorou, então, para que a tadalafila ganhasse popularidade entre atletas amadores e frequentadores de academia. A suposta vantagem, no entanto, não é respaldada por evidências científicas.
“Essa hipótese ganhou força principalmente em atividades de endurance, como corrida, ciclismo ou triatlo, e em locais de altitude, onde o oxigênio é mais escasso. Mas essa crença nem sempre é sustentada por evidências sólidas. A resposta depende muito do indivíduo e, mesmo nesses casos, os efeitos não são garantidos para todos”, afirma o endocrinologista Clayton Macedo, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e coordenador do Ambulatório de Endocrinologia do Exercício da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Diante desse cenário, a SBU publicou uma nota contraindicando o uso do medicamento sem expressa recomendação clínica. “As evidências disponíveis sugerem que a tadalafila atua predominantemente no corpo cavernoso, não na musculatura estriada esquelética, que é o alvo principal de treinos de força e hipertrofia”, diz o comunicado.
“Além disso, a sensação de ‘pump’ (inchaço muscular momentâneo) relatada por usuários provavelmente se deve à vasodilatação periférica transitória e representa um efeito placebo, sem benefício funcional real. Estudos controlados são limitados e não sustentam o uso da tadalafila como substância para melhora de desempenho esportivo”, acrescenta o documento da SBU.
Quais são os riscos?
Além da ausência de benefícios claros, os riscos são numerosos. Entre os efeitos colaterais mais comuns estão dor de cabeça, tontura, rubor facial, dor nas costas, desconforto gástrico, queda da pressão arterial e alterações visuais.
A queda súbita da pressão arterial pode levar a desmaios e complicações, e o uso em treinos intensos, especialmente quando a tadalafila é combinada com substâncias pré-treino ou álcool, pode provocar desmaios e problemas cardiovasculares.
“Ao alterar a resposta hemodinâmica, a tadalafila pode aumentar o risco de arritmias ou queda de pressão durante atividades físicas intensas, especialmente em pessoas com doenças cardíacas não diagnosticadas”, destaca a cardiologista e médica do esporte Luciana Janot, assessora científica da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).
Outro ponto de atenção é que o uso recreativo e sem orientação médica, especialmente entre jovens saudáveis, pode gerar uma dependência psicológica do medicamento — tanto no contexto sexual quanto nas atividades físicas, mesmo sem necessidade real.
“Isso pode evoluir para um quadro de disfunção erétil de origem psicogênica. A pessoa se condiciona ao efeito da medicação a ponto de acreditar que, sem ela, irá falhar. Com isso, passa a tomar todos os dias, não por uma dependência química, mas por um bloqueio psicológico que se instala”, explica Torres.
Há ainda o risco de mascarar sinais importantes de doenças como hipogonadismo orgânico, em que há diminuição da testosterona, e problemas cardíacos. Por exemplo: um homem com disfunção erétil por um quadro subjacente pode “driblar” a questão com o medicamento e retardar a busca por diagnóstico e tratamento. O sintoma melhora temporariamente, mas a causa permanece evoluindo silenciosamente.
A situação é ainda mais alarmante quando o medicamento é usado em conjunto com hormônios como a testosterona, prática comum em academias. “A combinação pode gerar sobrecarga cardíaca, alterações de pressão arterial e risco aumentado de arritmias”, adverte Macedo.
‘Distorção perigosa’
Em nota enviada ao Estadão, a Anvisa reforça que a tadalafila só pode ser vendida mediante prescrição médica, ainda que não exija retenção da receita. Segundo a agência, entre 2019 e 2025, foram registradas 76 notificações de eventos adversos relacionados à substância no sistema VigiMed, com queixas como cefaleia e falta de eficácia. Embora os números sejam considerados baixos, houve aumento progressivo das notificações, o que reforça o alerta para o uso sem acompanhamento profissional.
“Todo medicamento apresenta riscos relacionados ao seu uso, principalmente quando administrado sem orientação médica”, diz a nota oficial. A agência expressa preocupação com o crescimento da automedicação e do uso de medicamentos como a tadalafila para fins estéticos ou de performance. “Essa prática pode gerar efeitos colaterais graves e compromete a saúde pública ao estimular comportamentos de risco e banalizar o uso de substâncias controladas.”
“Nenhuma sociedade médica reconhece a tadalafila como substância ergogênica (capaz de melhorar a performance nas atividades físicas)”, salienta Macedo. “Utilizá-la com esse objetivo é uma distorção perigosa, sem respaldo científico e cercada de riscos à saúde.”
Luciana complementa: “O uso indiscriminado de medicamentos que alteram a circulação, especialmente quando combinado com hormônios, representa uma ameaça real à saúde e vai na contramão de uma prática esportiva segura. Qualquer uso deve ser feito com orientação médica e, idealmente, após avaliação cardiovascular adequada.”